Para ser rigorosa, este
título seria “Os Filhos de muitos Pais e de muitas Mães.”. Mas era um pouco
comprido. E eu passo a explicar quem eles são eles.
Geralmente aparecem na
minha vida quando passam para o ensino secundário, entram na minha sala de aula
misturados com todos os outros, aparentemente sem diferenças visíveis. São secretos
ou barulhentos, sentam-se nas últimas carteiras ou nas primeiras, vestem-se discretamente,
ou são góticos, ou usam rastas, ou são fashion. Interagem com os colegas ou ficam
no seu canto. Participam nas aulas ou nem tiram o livro da mala. Nas primeiras
aulas querem agradar à professora ou antagonizam-me.
Até aqui, tudo normal.
Adolescentes, jovens alunos, portanto. Estamos no reino da escola secundária,
meus amigos, para quem não conhece a realidade, é isto.
Depois, a pouco e pouco,
vamo-nos conhecendo. Devagarinho, como a raposa e o principezinho. Sem pressas,
que temos um ano, ou três anos (espero sempre que não me fujam) para nos cativarmos.
As idades variam entre os 14 e 16, mas rapidamente percebo que pela vida
passada, já vão nos 30.
Tenho o privilégio de
ensinar a disciplina de Português e pedir aos alunos que escrevam sobre si, a
sua vida, as suas memórias (a pretexto do treino da escrita, mas treino de
deixar que digam do que lhes vai na alma). É para isso também que a escola
serve, sempre trabalhei assim, com afectos. Se assim não mo permitissem, seria
funcionária do registo predial.
E começo a ligar as suas
caras, as suas vozes, os seus gestos às suas histórias de vida. Por muito
diferentes que sejam, estes filhos de muitos pais e de muitas mães têm alguns
traços em comum – confiam pouco (ou nada) nos adultos, escondem as emoções, mas
fingem-nas muito bem. A tristeza vem vestida de espalhafato, a mágoa vem
travestida de risadas em voz alta, a desilusão vem embrulhada em desafio.
Começaram cedo a sua
aventura de vida. Na infância, ainda sem perceberem o que é isto das relações
humanas, viram o seu ninho cair da árvore, como passarinhos no inverno. Apanhados
no meio de um divórcio de pais ainda muito jovens, que os tiveram cheios de
amor, são divididos ao meio, com o resto dos bens do casal.
Alguns “ficam” com a mãe,
outros com o pai. Antigamente era raro ver uma criança ficar a cargo do pai.
Hoje em dia é mais comum. As mulheres também trabalham, as condições económicas
são outras, as mulheres emigram sozinhas, um mundo novo.
Alguns perdem de vista
um dos progenitores. Outros passam a ver um dos progenitores algumas vezes por
semana. Nunca mais os vêem juntos. Nunca mais serão um núcleo, um ninho, O amor
foi dividido ao meio. Mas alguns recebem a dobrar.
Na tentativa de superar a
culpa, alguns pais e mães, atabafam estes filhos quando estão com eles de amor,
traduzido em brinquedos, coisas, dias únicos de grandes animações, viagens. E
estes filhos recebem amor às camadas, aos soluços, agarram o que podem, algum
transborda, outras vezes não chega lá nada, porque não há continuidade. Há um
ir e voltar.
Como estar à beirinha do
mar e tentar agarrar a espuma da onda. Eles sentem que o amor está lá, mas não
conseguem agarrá-lo nas suas pequeninas mãos. Por vezes vem a onda e são submersos,
enrolados neste vai e vem de emoções dos adultos que eles não percebem.
Mas depois, com o passar
do tempo, os afectos vão-se multiplicando, como uma rede de pesca. Ou como uma
constelação no céu. Surgem novas pessoas nestas vidas pequeninas.
Um companheiro da mãe,
uma nova figura paternal. “Outro pai? Devo amar este pai como o meu, o que eu
já conheço?”- “ Uma companheira do pai. Outra mãe? Devo amar esta mãe como a
minha, a que me dá colo quando eu choro?”
- “Deves”, dizem os adultos.
Deves amar estas novas pessoas, porque os pais gostam delas e agora são teus também.
“Fomos nós que os escolhemos”, dizem o Pai e a Mãe, mas tu tens de os amar porque
é assim”.
Nova fase. Já vamos em
duas casas, duas famílias para uma só pessoa. Cada uma dessas famílias, terá
outras crianças que também são filhos de muitos pais e de muitas mães. E estão
lá, nestes novos ninhos onde eles passam alguns dias por semana. Vão chegando
mais crianças, mais passarinhos caídos do ninho. Recebem todos amor e coisas,
uns mais do que outros, porque cada um tem um ou dois pais, uma ou duas mães,
todos diferentes e cada adulto não é igual ao outro.
As minhas alunas por vezes dizem-me frases
que tenho de processar porque não entendo à primeira – “Este fim-de-semana não
posso fazer o trabalho porque fico a dormir no quarto da enteada do meu padrasto, e
não tenho muito espaço para trabalhar”...
Nova fase. Por vezes
esses dois ninhos desfazem-se de novo. E estes filhos já cresceram. Criaram
laços com os novos Pais, com as novas Mães. (Madrasta e padrasto, se chamam, antigamente
estes nomes tinham a conotação malvada das histórias de fadas, hoje em dia já é
comum… só dói um bocadinho).
Fazem-se as malas para
novo ninho. Ou assiste-se à partida de um dos Novos Pais ou de uma Nova Mãe. Geralmente,
estes, como não são de sangue feitos, mesmo que no coração tenham entrado,
desaparecem nos caminhos deles. Com eles desaparecem irmãos que não eram de
sangue, mas foram de cumplicidade.
E por vezes aparecem
outros adultos. Uma nova mãe, um novo Pai. E outros filhos. Talvez alguns
venham na bagagem destes Pais, talvez outros tenham a sorte de os ver nascer e
sejam seus irmãos de sangue.
- “ Esperemos que este do
meu sangue não me abandone também. Ainda é bebé, é meu, este pode ser que fique
para sempre.”
E ainda há os filhos da
Guarda Partilhada. Esses são os que mais desgostos me dão na escola “Seus
desgraçados!” –“Então onde está o portefólio que já estava todo feito e era
para entregar hoje? E onde está o trabalho que era para apresentar na aula de
hoje?”.
As respostas são dadas em
voz baixinha, eles sabem que eu sei, eu sei que eles sabem, mas já nos esquecemos
todos… -“Esta semana estou na minha mãe e o portefólio ficou na casa do meu
pai; Esta semana estou no meu pai e na casa dele não há net, não consegui
passar o trabalho para a pen”. –“Mas para a semana eu trago, está bem,
professora?”
Claro que está bem. Claro
que está tudo bem. Que importância tem atrasar o trabalho uma semana? Que importância
tem dividir estes jovens ao meio, em mil pedaços, dar-lhes afectos, tirar-lhes
afectos, mudá-los de casa, dar-lhes irmãos, tirar-lhes irmãos, amá-los, sim,
mas aos soluços, em vagas conforme os afectos e as relações dos adultos…
Tenho um amigo que um dia
me deu a solução para esta questão que é cada vez mais usual na nossa
sociedade.
Até aos 18 anos os pais
deveriam manter uma casa onde os filhos ficariam a viver. E eles, pai e mãe, iriam
à vez morar na casa, semana sim, semana não, para tomar conta deles. O resto
do tempo, pai e mãe, que se organizassem. Mas mantivessem o ninho dos filhos. Parece-me
a solução menos egoísta. Cara? Dispendiosa? Difícil? Muito.
Mas pensemos nisso e se
valeria a pena e o custo.
Os jovens filhos de
muitos pais e de muitas mães sobrevivem. Como todos nós, arranjam estratégias
de sobrevivência. Alguns têm o sonho de constituir uma família, muitos querem
viajar, outros dizem que não querem nunca ter filhos.
Continuam a não confiar
muito nos adultos até eles próprios se tornarem adultos. Depois não sei. De alguns sei. Alguns são meus filhos. Muitos
dos meus alunos ficam meus amigos. Encontro-os por vezes, às vezes, muitas
vezes, por aí ou anos mais tarde. Sobreviveram. Têm feridas, mas tornaram-se
adultos, não desistem de lutar. São corajosos e generosos.
Para os meus alunos - é para eles que eu trabalho. É para eles que a
Escola é às vezes um porto seguro, apesar de tudo.
Adoro o texto. Como filha de pais divorciados, que teve a sorte de não se sentir tão divida, como mãe e como simples pessoa preocupada com o futuro da sociedade em geral. Muito bom! Parabéns!
ResponderEliminarObrigada pela Partilha Marta. Cada pessoa é um mundo e há casos mais fáceis que outros, nem todos traumáticos, felizmente. Apenas tentei mostrar muitas situações que já observei.
EliminarTexto fantástico!
ResponderEliminarObrigado pelas sensações menos boas que me fez sentir, mas que invocam outras que dão força para o futuro.
Obrigada pela leitura Paulo Reis. No fundo somos todos responsáveis por quem amamos, pessoas grandes ou pequeninas.
EliminarMuito bom...
ResponderEliminarObrigada
Obrigada eu Maria Fernanda, pela leitura do blogue.
EliminarQuando há professores (e há-os) que compreendem que a escola é outro local de educação (por vezes quase o único) e não apenas de transmissão de conhecimentos, e que esta só pode ser feita com afectos, tudo é menos mau, mesmo para quem tem vidas complicadas. Obrigada Teresa por seres um "para-ninho", texto lindo.
ResponderEliminarGrata eu, Cristina Cunha, pelo teu olhar.
EliminarBom texto para final de noite...vou pensar!
ResponderEliminarObrigada Carla Geraldo pela tua leitura. Beijinhos
EliminarFantástico o texto e triste realidade que não começa só no secundário!😔
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