Como foi viver a
Revolução na escola.
Em feriados especiais
como o 25 de abril e o 1 de maio lembramos aos mais jovens a palavra Liberdade.
É uma palavra muito bonita, usada pelos nossos maiores poetas e carrega em si
valores enormes, mas quem nunca soube o que é estar privado dela, pode ter
alguma dificuldade em abranger todo o seu significado.
Por isso, as memórias
individuais de cada um fazem as memórias de um Povo e devem ser contadas,
passadas aos outros, aos mais novos, que por vezes ficam calados com olhos de
espanto ao ouvir contar as histórias de quem foi preso, torturado, perseguido
como criminosos, apenas por querer exprimir a sua opinião.
Viver em ditadura em
criança como eu em Portugal era viver a preto e branco. Era viver em silêncio
do “vê lá não digas fora de casa as anedotas que se contam sobre o Presidente
da República”.
Era ver na televisão os
nosso soldados nas “colónias” nos seus fatos de combate e baionetas a desejar
boas festas e muitas prosperidades à família na época de natal, com lágrimas
nos olhos e voz embargada, e pensar em pavor, daqui a nada é o meu irmão que
vai estar ali.
Viver em ditadura em
criança era não poder ler livros fora de casa, como os de Jorge Amado, que
estavam amorosamente guardados lá nas prateleiras e foram todos devorados por
mim, e só mais tarde vim a saber que o maravilhoso escritor era “comunista” e
não era bem visto em Portugal.
Viver em ditadura em
criança, era ter apenas um livro único na escola, igual para todo o país, cujos
textos mostravam que as meninas deviam aprender a bordar e que vivíamos num
país “pobrezinho mas honesto”. Viver em ditadura em Portugal era conhecer
outras meninas como eu que nem esse livro único tinham, que não iam à escola e
que saiam de suas casas nas aldeias e iam trabalhar como “criadas de servir”
para casas de famílias em Lisboa. Mas deste assunto, contarei um dia outras
histórias que me vieram parar às mãos e à vida.
Hoje vou contar o dia em
que percebi o que queria dizer Liberdade.
Era 26 de abril de 1974.
E como já contei, andava no Liceu Camões, onde as meninas tinham sido recebidas
“por favor” pelo Reitor num Liceu de excelência mas apenas para rapazes. As
meninas estragavam a imagem do Liceu, por isso, portassem-se com decoro e
decência, ou rua.
(na minha crónica O dia em que percebi que era Feminista... Ainda antes de sentir que era Mulher)
(na minha crónica O dia em que percebi que era Feminista... Ainda antes de sentir que era Mulher)
E havia algumas regras.
Contactos com namorados ou amigos ou rapazes, só a 300 metros dos portões do
Liceu. Menos que isso, dava direito a processo disciplinar. E as batas, as
batas brancas, odiadas por todas nós. Pelo joelho, era a medida autorizada.
Mesmo que por baixo já usássemos a mini-saia da moda, a bata branca, dava-nos a
todas um ar de meninas tristes de asilo.
E no dia 26 de abril, lá
fomos para o Liceu. Havia festa no ar, algumas de nós tinha saído à rua no dia
anterior, outras tínhamos passado o dia coladas à radio a ouvir o que se
passava. Mas tínhamos na cabeça e no coração a palavra Revolução. Eramos todas
muito novas para perceber o que se passava realmente. Nenhuma conhecia a
palavra “fascismo” ou “ditadura”, mas sabíamos que não era justo a forma como
eramos tratadas no Liceu, lá isso sabíamos.
“Alunas de segunda”; “As
Raparigas só trazem desgraça ao Liceu”; “Os Rapazes são melhores”; “Não falem
alto, não digam nada”; “Olhos baixos, não olhem para os rapazes”; “Não
provoquem, usem as saias pelo joelho”. Estas eram as frases que alguns
professores diziam.
No dia 26, todas, sem
combinarmos nada, fizemos a nossa revolução no pátio do Liceu. Escrevemos
palavras de ordem nas batas, primeiro um pouco a medo… mas continuamos, alguma
pegou numa tesoura dos trabalhos manuais e começou a rasgar devagar, depois com
mais vigor, outras se seguiram.
E uma a uma, TODAS,
cortamos as batas às tiras, criando de repente a visão de um pátio cheio de
pássaros de penas brancas a esvoaçar, porque corríamos e riamos todas juntas em
bando. Uma de nós tinha-se lembrado de levar pela primeira vez um leitor de
cassetes (nem os jovens de agora sabem o que isso é) mas servia para passar
música e enchemos o pátio de sons alegres, cantigas que cantávamos juntas.
Finalmente, demos o
grande salto de coragem que nos distinguiu para sempre. Uma menina gritou –
Vamos passar para o lado de lá! – Era o lado proibido, o lado dos rapazes, onde
nunca se poderia passar. Bastava passar um corredor interior, uns 200 metros,
mas era um túnel de coragem, o salto para a afirmação. Era dizer assim – Nós
somos alunas, iguais aos rapazes.
E fomos. Um grupo de
miúdas de batas todas rasgadas às tiras, aparecem desgrenhadas no pátio dos
rapazes. Não sei quem ficou mais espantado e sem saber o que fazer. Eles, ou
nós.
Sei que ficamos ali a
manter a posição. Os rapazes aguentaram corajosamente aquela visão surreal e
nós regressámos valentes e cheias de nós aos nosso recreio.
Acho que tínhamos
crescido imenso. Percebemos que fazíamos parte do Mundo agora.
Aquilo era um cheirinho a
Liberdade.
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