O dia em que percebi que era Feminista... Ainda antes de sentir que era Mulher


Esta minha memória é dedicada à minha querida Teresa Horta, Escritora, Poetisa e Feminista, a minha inspiração de coragem e dedicação à causa Feminista.

Hoje é um dos dias do meu aniversário e parece-me adequado contar esta história. É uma história muito antiga. Passa-se antes do 25 de abril. Para os mais novos, foi aquela Revolução dos Cravos  que estudaram na Escola e (com sorte) viram um filme chamado Capitães de Abril. Disseram-vos que não havia Liberdade e havia Censura. Mas havia mais coisas que eu vou contar aqui.

Um dos momentos mais importantes na vida de uma menina ou de um rapaz da classe média – chamavam-se os “remediados” (os pobres não podiam ter isto, alguns tinham, mas eram muito poucos) era a entrada no Liceu. O Liceu é o que vocês conhecem agora como Escola Secundária. Agora é normal, toda a gente vai, a maioria faz um grande “frete”, eu sei, mas quando eu tive idade de ir para o Liceu, foi uma alegria.

A minha família tinha possibilidade de mandar os filhos estudar, não precisávamos de ir trabalhar aos 12 anos, como muitos outros meninos (um dia falarei desses meninos) e eu preparei-me para esta etapa maravilhosa da minha vida.

Nessa altura os Liceus não eram mistos, como agora. Havia Liceus (Escolas Secundárias) para rapazes e Liceus para raparigas. Estranho não é? Mas era assim. Um dia perguntei a uma vizinha mais idosa a quem eu visitava qual seria a razão e ela respondeu-me: olha menina é assim “O povo diz… o lume ao pé da estopa, vem o diabo e sopra”. Não percebi nada, mas eu achei que a senhora idosa já era um pouco confusa e não liguei. Mais tarde, percebi tudo sobre o fogo, o diabo e os anjos… mas isso é outra história.

O meu irmão mais velho tinha andado no Liceu Camões (só para rapazes); a minha irmã mais velha tinha andado no Liceu Filipa de Lencastre (só para raparigas) e eu preparava-me para seguir o caminho da minha irmã. Mas espanto dos espantos houve uma novidade no ano da minha iniciação no Liceu.

O Liceu Camões ia abrir as suas portas às raparigas, íamos ser aceites num Liceu de Rapazes.

Eu fiquei muito feliz. O Camões era muito perto da minha casa e eu poderia ir a pé, o que era um grande salto na minha independência. Já não teria de ir na carrinha (paga pelos pais) que transportava as meninas para a escola preparatória Marquesa de Alorna onde fiz os dois anos de Preparatório (o que equivale agora ao vosso 5º e 6º ano – 2º ciclo) e cujo motorista mostrava fotografias de homens e mulheres nuas às meninas, e que eu nunca quis ver porque tinha um nojo e um medo do homem, e ficava sempre sentada lá bem atrás (essa história será outra quando eu falar dos abusos silenciosos sofridos pelas meninas).

Antes do 1º dia de aulas no Liceu Camões havia algumas regras a cumprir. Os livros, claro, material, óbvio e a bata branca que devia ter comprimento abaixo do joelho. Ora eu já tinha uma bata do ano anterior. Não tinha crescido muito (tinha 12 anos, não era muito alta) a bata servia, mas vi a modista (chamavam-se assim as senhoras que sabiam costurar) baixar a bainha da bata um bom bocado. Ficou feio. Mas achei que era por causa do frio… Eu teria de ir a pé. E não se podia usar calças. Esqueci-me desse pormenor. As raparigas não podiam usar calças. (respirem fundo, sim?)

No primeiro de dia de aulas fomos avisados que iria haver uma recepção aos alunos. Fiquei feliz de ir conhecer os colegas. 

Assim foi - Devíamos ir com a família. Eu fui com a minha mãe. Orgulhosa de ir para o Liceu. De Bata. De pasta. Com os Livros. Fomos recebidas num enorme ginásio, mas só meninas, como eu, entre os 12, 13 anos, iríamos todas frequentar o primeiro ano do liceu, (equivalente ao vosso 7º ano, para se contextualizarem). Os rapazes não tinham sido convocados para aquela recepção.

Em pé e encostadas às mães um pouco intimidadas, pois ao fundo havia um grande palco onde se encontrava um senhor de fato escuro (que metia um bocado de medo e cujo nome eu não nomeio, porque é como o personagem do Harry Potter, mas este era real) com um microfone e que em poucos minutos nos fez um breve discurso.

- Silêncio! Disse, em primeiro lugar. Em segundo lugar, fez-nos saber que tinha aceitado raparigas no Seu Liceu por imposição do Governo, contra a sua vontade. Parece que havia raparigas a mais a querer estudar nos Liceus e havia excedentes de raparigas, por isso, iria disponibilizar uma das alas do Seu Liceu para algumas turmas de raparigas. Apenas uma das Alas. (O Liceu Camões é dividido em duas partes simétricas pelo ginásio). As raparigas ficariam apenas num dos lados do Liceu e Nunca, mas Nunca poderiam passar para o lado dos Rapazes. A mesma regra se aplicaria aos rapazes. Depois de anunciar esta e única regra, concluiu:

- Espero que as raparigas se comportem com o decoro devido que se espera às senhoras (tínhamos 12, 13 anos), visto que é graças à minha boa vontade que têm a benesse de frequentar este estabelecimento de ensino de excelência. Caso não apresentem o devido decoro (tive de ir ver esta palavra ao dicionário mal cheguei a casa) serão expulsas de imediato. Este é uma Liceu de rapazes e as raparigas estão aqui apenas por favor!

Assim terminou o discurso, assim terminou a recepção, assim terminou o sorriso que eu levava engalanado como uma jóia na bata, assim de cabeça baixa regressamos a casa a minha mãe e eu. Não houve grande conversa, não houve comentários, não houve festa por ter  entrado no Liceu.

Foto de Sally Mann

Não senti tristeza, não senti desilusão, não senti medo do senhor (e metia medo a toda a gente, vos garanto). Senti apenas revolta.

Tinha 12 anos apenas e só senti revolta – estou no Liceu por favor? Estarei também neste mundo por favor?


Uns anos mais tarde ouvi falar dos movimentos feministas e pensei. Não, não estou aqui por favor. Este é o meu lugar! E aqui estou. 

Comentários

  1. Teresa, parabéns pelo blogue :) Gosto dos textos :) Beijinho

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    1. Obrigada pelo apoio Filomena :-) Vou continuar. A escrita é um vicio :-)

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    1. Obrigada Jorge. A nossa vida está cheia de historias.. é só começar e elas por ai aparecem. Grata pelo apoio

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