IVG – 10 anos após aprovada a lei, o tema continua tabu.


IVG – significa Interrupção Voluntária de Gravidez, outra forma de dizer Aborto. Interrupção de Gravidez significa que se interrompe um processo biológico que provavelmente terminaria numa vida. Voluntária significa que a pessoa que está grávida, neste caso a Mulher o faz através de um procedimento médico e por sua livre vontade.

Gustav Klimt
Tema tabu, controverso, que gera movimentos prós e contras, que gera discussões médicas, éticas, sociais, e muitas mais. E tabu, porque uma mulher que faz uma IVG não o vai contar a toda a gente, tal como faria se tivesse feito uma operação a uma apendicite. Porque não é uma decisão fácil. Porque não é mesmo nada fácil. Porque é uma das opções mais dolorosas na vida de uma Mulher. 

Porque pode deixar marcas psicológicas e emocionais  para o resto da vida. E porque vem carregada de culpa, de vergonha e de um monte de sentimentos negativos que durante séculos foram incutidos nas mulheres.
Não vou lançar a discussão do pro ou contra. Vou contar-vos um pouco de história e algumas histórias.

 Cada uma de nós mulheres tem a sua.


Faz agora dez anos que “Na votação final global na Assembleia da República, a nova lei do aborto foi aprovada com os votos a favor da esquerda e de 21 deputados do PSD. As propostas da direita que visavam condicionar a tomada de decisão da mulher foram rejeitadas. O novo diploma despenaliza o aborto até às 10 semanas de gravidez e vem assim mudar uma legislação que já tinha 23 anos. Esta lei diz que desde há dez anos que o aborto não é punível (ou seja que antigamente era crime e ia-se para a prisão). Diz a Lei que não é crime se:

     -  Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;


      - Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;

      - Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez; ou
a
       -Houver sérios indícios de que a gravidez resultou de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez.


   (podem consultar em Artigos 140º Aborto, 141º Aborto agravado e 142º Interrupção da gravidez não punível do Código Penal Português.)

      Esta lei foi aprovada há 10 anos através de um referendo feito à população. Antes o aborto era considerado crime e as mulheres que o praticavam eram presas. (algumas eram presas, outras não)

    Posteriormente a lei nº 16/2007 de 17 de Abril diz que a  interrupção voluntária de gravidez é permitida até a décima semana de gestação a pedido da grávida independentemente das razões podendo ser realizada no sistema nacional de saúde ou nos estabelecimentos de saúde privados autorizados.

     Contando agora as Histórias.

    Andava eu já pelos meus vintes e dou de caras com dois livros que me marcaram para sempre

Peste Malina (1983) de Ivone Chinita que reúne treze depoimentos de mulheres de diferentes estratos sociais e regiões e tratam de três grandes núcleos temáticos: a infância e a adolescência, a sexualidade e as transformações operadas pelo 25 de Abril na vida da mulher; 

e Puta de Prisão de Fernanda Fráguas e Isabel do Carmo onde são relatadas cinquenta histórias de vida de cinquenta prostitutas de rua. As autoras viveram quatro anos, em convivo diário com estas prostitutas, em prisões portuguesas. Foi assim que partilharam com elas o mesmo espaço e as mesmas vivências do dia-a-dia e contaram as suas histórias. (1983)

(se encontrarem os livros, leiam-nos) 

Eu era uma rapariga universitária da classe média portuguesa e nunca na vida me tinha deparado com vidas como as que li nestes dois livros. As histórias de vida que ali se contavam eram de mulheres que podiam viver lado a lado na minha cidade, viviam no meu país.

Eu vivia numa rua em Lisboa, onde passeavam duas ou três prostitutas de rua sempre a horas certas e desde criança que as conhecia de vista e sabia o que faziam. Não me perguntem como eu sabia, mas sabia. Simpatizava mais com uma delas porque era loira e usava umas botas muito altas, talvez por ser pequenina e muito magrinha. Eu gostava dela, pronto.

Vi-as envelhecer, quase sempre com as mesmas roupas e os seus sorrisos ristes. Nunca tive coragem de lhes falar, mas eram minhas vizinhas de passeio. De vez em quando estava dias sem a ver. Será que messes dias elas estaria na prisão como as “putas” das histórias que li naqueles livros? Nunca soube o seu destino, nunca lhes falei. Passeávamos na mesma rua, mas vivíamos em mundos paralelos.

Mas adiante – nestas histórias dos livros contavam-se episódios de miséria humana indescritível. Mulheres que se prostituíam para comer, pois não sabiam fazer outra coisa, que viviam ciclos e ciclos de miséria que passavam de mães para filhas, que tinham filhos e mais filhos e e que por vezes faziam abortos. As condições em que os faziam eram verdadeiras cenas de tortura. Feitos em condições isentas de qualquer higiene por curiosas, nada de cuidados de saúde, com métodos e técnicos próprios da idade média, por vezes com agulhas de tricot com que perfuravam o útero e a placenta, por vezes eram deixadas a sangrar dias a fio. Sem cuidados médicos. Eram presas por prostituição, por consumo de droga, um aborto iria agravar a sua pena. Não se falava mais nisso. Sobreviver era o que importava. Para voltar à rua. Num ciclo sem fim.


Mas não foi só nos livros que conheci o que era um aborto. Por várias vezes na década de 80 em Lisboa acompanhei amigas às chamadas “abortadeiras” que eram parteiras ou curiosas ou experientes no assunto conforme a verba que cobravam.

 Havia mulheres que tinham mais verba e iam a clínicas a Espanha ou outros países onde a IVG era legal. Aí, nesses países, o procedimento era feito em hospitais em plena segurança. Aqui, em Lisboa, eram pequenos apartamentos em prédios com escadas escuras, sem elevador onde as minhas amigas entravam a tremer, de corpo e alma e quem as acompanhava, eram as amigas, ou com sorte o namorado. Nós, os que íamos a acompanhar, ficávamos à porta, à espera, nervosos, ansiosos para que tudo corresse bem, “valha-nos nossa senhora que ela volte pelo seu pé que não tenhamos de ir ao hospital e depois o que dizemos”…. 

Não podíamos entrar nas casas as abortadeiras não queiram testemunhas, era crime, podiam ir presas, elas, as meninas que faziam o aborto, quem as levasse lá, nós…


Isto não é uma história de terror. Isto é o que acontecia por várias razões, nem todas elas tão trágicas como as dos livros que eu lera. 

Porque em extrema situação de pobreza não havia dinheiro para comida quanto mais para métodos de contracepção; e porque nas jovens de classe média os métodos contraceptivos não eram tão divulgados como agora; porque não se vendiam preservativos nos supermercados como agora, porque não havia a “pílula do dia seguinte”, porque não havia médico de família nem centros de saúde, porque o estigma de uma gravidez aos 18, 19 anos fora do casamento era algo demasiado pesado para carregar, porque as famílias de bons costumes não iriam aceitar, porque “a minha filha vai virgem para o casamento”, porque nem sempre os namorados tinham coragem para assumir a responsabilidade, porque tínhamos Medo!


Felizmente nenhuma das minhas amigas morreu ou teve sequelas físicas. O tempo passou, casaram, tiveram as suas vidas, tiveram filhos e a vida continua. E nunca mais se falou daquele dia. Mas eu sei que a mágoa ficou lá. Há um vazio que acompanha uma mulher pela vida fora.


Seja qual for a razão – económica, social, de saúde, psicológica, porque a Mulher não se sente preparada para ser mãe, seja qual for a razão, nunca, mas nunca é uma decisão fácil fazer uma Interrupção de Gravidez. Não é um método contraceptivo. É uma decisão dolorosa, consciente e só a cada uma das Mulheres diz respeito.


Mas a mágoa fica para sempre. 

Comentários

  1. Gostei muito das suas palavras vive sempre afastada dessas realidades mas sempre me falaram nelas, sempre soue que existiam e e sei que existem , dez anos depois que dizer?? Tereza Lamy :É uma decisão dolorosa, consciente e só a cada uma das Mulheres diz respeito.

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    1. Muito obrigada pelo apoio. Encoraja a continuar a escrever para as mulheres e por elas.

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  2. No trabalho estou rodeada de Mulheres ,os Homens estão sempre em minoria, e mulheres de todo o estrato social , formação acadêmica , saiba-se que sou educadora de infância . Quer de colegas quer das famílias com frequência escuto as mais variadas e dolorosas histórias.Das que ouço,também são historias reais e sentidas contada na primeira pessoa de IVG , historias contadas com lágrimas no olhos, e ou angustia e ou raiva e ou sentimento de culpa.
    Cada vivência é única. Eu quero dizer ás mulheres que fizeram que têm o meu NÃO JUlGAMENTO e o meu apoio .Às mulheres que passaram por isto muita força e não fiquem a culpabilizar-se para sempre....sigam em frente. Ás mulheres que nunca passaram por uma IVG e tem tendência a esquecer-se dos meios contraceptivos , informem-se nos centros de saúde,quais os caminhos possíveis ... Aos homens nunca deixem uma mulher sozinha nesta situação, que lhe deem todo o apoio ... gostava que todos lessem estas palavras da Tereza Lamy ......Ana Policarpo

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  3. Manuel Alexandre Félix12 de fevereiro de 2017 às 15:47

    "Isto não é uma história de terror. Isto é o que acontecia por várias razões," (...)
    Não é mas parece, e se virmos bem no fundo das almas dessas mães, é mesmo aterrorrizador o que têm de suportar.
    Felizmente, ao que parece, somos neste assunto, um País civilizado, se é que o termo seja adequado.
    Claro está que este problema será colmatado de uma forma mais justa e trânquila para estas mulheres se lhes for facilitado o acesso à educação que deveriam ter por direito.
    É por esta e outras mais razões que apoio icondicionalmenete, a voz representativa desta e de outras causas que dizem respeito às mulheres que a Tereza apresenta nos seus textos. Seria aconselhável que alguns homens também acompanhasem estes assunto, todos nós somos filhos de mulheres e alguns até são pais de algumas, queremos um mundo e condições melhores para elas.
    Parabéns Tereza Lamy. Keep going. :)

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