Leonor acorda ao som
irritante do despertador às 6.30. Salta da cama olha para o lado e deixa o marido
dormir mais um bocadinho, coitado, trabalha tanto. Toma um duche rápido, sempre
rápido, não tem tempo de por um creme no corpo, ela bem os compra no
supermercado em promoção, mas nunca tem tempo de os usar, sempre enfeitam a
prateleira da casa de banho…
Regressa ao quarto e
veste a roupa que deixara preparada de véspera. Olha-se ao espelho. Estas
calças não ficam bem com a blusa. Muda de blusa, pior, acha-se gorda, as
colegas no dia anterior, comentaram, “estas a aumentar um bocado de peso, não
estás? Já experimentaste uns sumos “detox”?” lembra-se que teve vontade de as
matar com o olhar ali mesmo no momento, ela tem lá tempo para “detox” e sabe
que aumentou de peso, não precisa que as colegas olhem para ela como se fossem aves
de rapina à espera de um sinal de fraqueza da presa já fragilizada pelo tamanho
da auto-estima que diminui à medida que os números da balança aumentam.
Volta a
vestir a outra blusa, mas deixa-a por fora das calças, disfarça mais, disfarça os
quilos a mais ou a tristeza, Leonor?
Uns brincos ficavam bem, sorri a pensar
nos azuis que combinavam com a blusa, talvez com os olhos que lhe diziam dantes
que brilhavam quando sorria, procura os brincos, mas lembra-se que deixara a
filha brincar com a caixa das bijutarias e só encontra um.
Um brinco, desirmanado,
sem par, sozinho na caixa, sozinho, como ela se sente nos dias cinzentos em que
os olhos azuis perdem o brilho.
Esquece os brincos,
vira.se de costas para o espelho, e acorda o marido. Acorda para a vida diz a
si própria, mas ouve-se a si própria dizer em voz alta:
“Acorda, são horas, António, já
podes ir tomar duche, eu já me despachei”
Klimt, Mother and a Child |
Vai ao quarto do filho
mais velho, que já anda no 2º ciclo e acorda-o com uma festa na cabeça. “Acorda
que são horas da escola”, dá-lhe um beijo que isto de ser mãe de filhos que
crescem, tem que se lhe diga, de manhã ainda cheiram a bebé, a pó de talco e a
leite.
“Veste-te depressa e vem
à cozinha comer, filho”. – “Rápido, não percas tempo”. De véspera, tinha ajudado
o rapaz a fazer os trabalhos de casa e a arrumar a mochila. 5 ou 6 quilos de
mochila, mais outra com a roupa da Educação Física. Tudo arrumado de acordo com
o horário dele.
Ouve a voz da Directora de Turma – “O seu filho é muito distraído
e irrequieto, precisa de ser mais responsável e ganhar maturidade, deve
deixá-lo fazer as tarefas sozinho, ou talvez levá-lo a um psicólogo, pode ser hiperactivo,
já reprovou um ano, temos de vigiar este menino”.
Temos de vigiar este filho
que lhe nasceu de um amor primeiro ainda tão jovem.
“Temos” quem? Ela, o pai? Filho
de um casamento desfeito, fruto de uma “guarda partilhada” desde os cinco anos,
uma semana em casa da mãe, uma semana em casa do pai. Aos 12 anos, já reprovou um
ano na escola, mas Leonor sabe que ele é inteligente, aprende e compreende tudo
o que se passa à sua volta.
No dia em que parte para casa do pai, o coração de
Leonor fica mais pequeno, vê sair de casa uma parte dela, perde-se sem saber o
que vai na cabeça e no coração do filho na semana em que ela não o vê; no dia
em que ele regressa, o abraço é longo, mas o menino volta diferente, talvez zangado
com ela por o ter abandonado à sua sorte, talvez protegendo-se para não gostar
demais da mãe, porque sabe que aquele abraço não vai durar para sempre, talvez
porque saiba que ela o irá mandar embora outra vez e outra e outra, sempre que
a semana acaba.
Vai ao quarto da mais
pequenina que ainda anda na creche. Filha deste segundo casamento, que deveria
ser, agora, para a vida toda.
Sarah Afonso, O Casamento na Aldeia |
Ninguém faz o mesmo erro duas vezes, Leonor. Ninguém!
Mulher nenhuma erra duas vezes na escolha do parceiro do companheiro para a
vida. Há animais na natureza que acasalam para sempre. Mas nós não somos
animais, Leonor, somos seres naturais, mas vivemos numa sociedade complexa, com
mais regras do que as das florestas, do que as dos lobos.
A filha de três anos
acorda ainda no país dos sonhos. Não sabe se esta mãe é a verdadeira ou a fada
madrinha com que sonha nas histórias que ouve na creche. Com o corpo ainda mole
e doce deixa que Leonor lhe dispa o pijama e lhe vista a roupa para o dia que
se seguirá.
Na cozinha, Leonor
prepara o pequeno-almoço para quatro. O marido dá uma ajuda com a mais
pequenina a beber o leite. “Ajuda a tomar conta da filha dele”. É bom pai, “ajuda”.
Toda a família tem de
sair de casa, cada um para o seu destino, há só um carro e há que despachar. Primeiro
o menino na escola do segundo ciclo, carregado com as suas mochilas, sai do
carro de cara triste, não disse à mãe que terá um teste nesse dia, nem disse
que há uns meninos na escola que fazem troça dele porque… nem ele sabe porquê.
Um dia disse um disparate numa aula e a partir daí puseram-lhe uma alcunha. Passou
a ser o “gozado” da turma. Aquele que todos gozam porque é mais fácil troçar de
um e fazer parte de um grupo dominante, do que ser o alvo de troça. É isso que
é o Bullying. O filho de Leonor ainda
não contou nada disto nas duas casas onde vive, porque não tem uma casa, um
ninho, tem dois e em ambos se sente perdido.
Nem sabe como explicar
porque não é feliz na escola, sabe que é mais um, mas pode ser hoje passe
despercebido, porque há teste.
Leonor deixa a filha na
creche. Agora já custa menos. Mas nos primeiros dias, a menina ficava a chorar
agarrada às pernas na mãe com olhar aflito com quem diz, mas como podes ser tão
cruel que me abandonas aqui com tanta gente que não conheço? Leonor sossegava-a
com voz firme e com o coração destroçado:
– “Ficas bem, vais brincar com meninos
e eu venho já, é pouco tempo”. Começa cedo a mentir à filha, Leonor. A menina entra
antes das nove e a mãe irá buscá-la perto das seis da tarde, depois de sair do
trabalho. Serão cerca de nove horas de creche por dia para a menina… mas
sobreviverá. Irá de facto brincar com outros meninos e desenvolver a sua
criatividade. Até aos 18 anos terá tempo para se adaptar ao sistema.
O marido fica no trabalho.
Sai do carro e despede-se com um beijo. Na cara, ou dois beijos, conforme a
pressa. Mais tarde regressará a casa com um colega, graças aos colegas.
Passarão antes de chegar a casa pelo clube e tomarão umas cervejas para
descontrair e conversar. Faz-lhes bem, coitados, para relaxar do dia de
trabalho.
Leonor chega ao trabalho.
Terá 8 horas de escritório pela frente. Pode ser que as colegas hoje não lhe
falem em sumos “detox”, nem em ginásios, nem em tratamentos de pele “Que a tua
pele precisa de um esfoliante” - dirão.
Pode ser que o chefe não implique com o
trabalho dela. Pode ser que na cantina não haja muito barulho.
Pode ser que o
dia passe depressa para ir buscar os filhos, chegar a casa, fazer o jantar, dar
banho a uma, mandar o outro tomar banho, ajudar os trabalhos de casa de um,
brincar um pouco com a outra, por o jantar na mesa, ouvir o marido chegar,
receber um beijo na cara (ou dois, conforme a fome que ele traz e a pressa),
ver se toda a gente comeu, engolir o seu jantar, limpar a cozinha, por os
filhos na cama, mandar o rapaz desligar o telemóvel e acabar com os jogos, dizer
ao marido que está no sofá a ver televisão que se vai deitar.
Quando está quase a adormecer,
Leonor sente o corpo do marido a entrar nos lençóis e um toque de mão quente na
sua coxa. Ouve uma voz que lhe parece estranha e longínqua - “Estás acordada?” Percebe
o desejo dele e fica em silêncio.
Lembra-se dos dias em que
o amor dos dois era gritado em ondas de paixão, em que não havia palavras nem
convites, em que o desejo era pressentido apenas num olhar, em que os dois
corpos se uniam num só e em que o mundo acabava de todas as vezes que faziam
amor.
Mas o seu corpo esqueceu.
Dormente. Entorpecido. E finge que está a dormir. António não insiste e vira-se
para o outro lado.
No dia seguinte fingirá a
vida. Outra vez.
Se virem a Leonor,
digam-lhe que não está só
Triste saber que esta é ainda um história recorrente e que deveria ter ficado presa no passado. Mas, felizmente, hoje em dia, as coisas já vão mudando ainda que aos poucos... E cabe, principalmente à mulher a difícil tarefa de "educar" tanto o companheiro/marido/whatever e filhos, em termos de entenderem que não há criados uns dos outros mas sim igualdade entre todos e nos mais diversos níveis.
ResponderEliminarO problema é que a mulher tem-se deixado ir, embalada por esta cultura dominada pelo homem. Mas como disse atrás, tudo está a mudar.
Eu só escrevi a história pelos olhos da Leonor... não sei o que se passa na cabeça e no coração do António... será feliz?
EliminarParece-me que o António será feliz, sim, pois nem se apercebe sequer do que vai na cabeça da Leonor e do seu ritmo de vida. Terá que ser, como disse e por herança cultural, a Leonor a dar a volta à situação, digo eu.
ResponderEliminarMas mais uma vez repito, tudo está a mudar, embora lentamente. Só que é pena que estejamos a falar nas civilizações ditas desenvolvidas, ocidentais. Nas outras, é de levar às lágrimas.